“Pitágoras disse que a mais divina arte é a de curar. E, se a arte de curar é a mais divina, deve ocupar-se com a alma tanto quanto com o corpo, pois nenhuma criatura pode ser saudável enquanto sua natureza superior estiver enferma.” Apolônio de Tiana
Apolônio de Tiana foi o mais famoso filósofo do mundo greco-romano do primeiro século, e devotou a maior parte de sua longa vida à purificação dos muitos cultos do Império e à instrução dos ministros e sacerdotes de suas religiões. São muitas, variadas e freqüentemente contraditórias, as opiniões sobre Apolônio. Além de seu ensino público, ele teve uma vida à parte, uma vida na qual nem mesmo seu discípulo favorito entrou. Ele viajou para as terras mais distantes, e perdeu-se para o mundo por anos inteiros. Entrava nos santuários dos templos mais sagrados e nos círculos internos das comunidades mais fechadas, e o que ele disse ou fez lá permaneceu um mistério.
Nascido em algum momento dos primeiros anos da era Cristã (provavelmente entre 1 e 10 d.C.) em Tiana na Capadócia, Turquia ou Ásia Menor como era conhecida na época, Apolônio de Tiana teve pais aristocratas, de antiga linhagem e fortuna considerável. Muito cedo deu mostras de uma memória prodigiosa e de uma grande disposição para os estudos, além de ser de uma beleza notável. Aos quatorze anos foi enviado a Tarso, um famoso centro de estudos da época, para completar sua instrução. Porém, seu temperamento sério não se acomodava ao estilo de vida das escolas e mudou-se para Egue, cidade no litoral de Tarso onde encontrou o ambiente adequado para mergulhar nos estudos da filosofia.
Planície de Tiana
Freqüentava o templo de Esculápio, onde curas ainda eram realizadas, e desfrutou da sociedade e instrução de discípulos e instrutores das escolas de filosofia Platônica, Estóica, Peripatética e Epicurista. Mas, dentre todos esses sistemas de pensamento, foram as lições da escola Pitagórica que ele absorveu com uma extraordinária e profunda compreensão, mesmo que seu professor, Euxeno, não fosse um praticante da disciplina. Mas ouvir falar não era suficiente para Apolônio e, aos dezesseis anos ele iniciou-se na vida Pitagórica.
Quando Euxeno perguntou-lhe como ele iniciaria seu novo modo de vida ele respondeu: “Como o doutor purga seus pacientes”. Daí em diante ele se recusava tocar qualquer coisa que tivesse tido vida animal, considerando que isso densifica a mente e a torna impura. Ele considerava que a única forma de alimentação pura era a produzida pela terra: frutas e vegetais. Também se abstinha do vinho, pois mesmo sendo feito de frutas, “tornava o éter túrbido na alma”, e “destruía a compostura da mente”. Andava descalço, deixou seu cabelo crescer livremente, e vestia-se somente com tecidos de linho. Agora vivia no templo, para a admiração dos sacerdotes e rapidamente se tornou tão famoso por seu ascetismo e vida pia, que uma frase dos cilícios sobre ele (“Para onde estão correndo? Apressam-se para ver o jovem?”) se tornou um provérbio.
Quando tinha vinte anos seu pai morreu (sua mãe havia morrido alguns anos antes), deixando considerável fortuna, a ser dividida entre Apolônio e seu irmão mais velho, um jovem dissoluto de 23 anos. Como ainda era menor, Apolônio continuou a morar em Egue, mas chegando à maioridade voltou a Tiana para tentar salvar seu irmão de sua vida de vícios. Seu irmão aparentemente já tinha dissipado sua parte da herança e Apolônio imediatamente deu-lhe metade de sua própria parte e, com conselhos amorosos, devolveu-o ao mundo. Depois distribuiu o restante de seu patrimônio entre alguns parentes, mantendo para si apenas uma mínima parte.
Nessa época fez um voto de silêncio por cinco anos, que foram passados na Panfília e na Cilícia. Mas, ainda que passasse muito tempo em estudo, não se isolou do mundo, mas manteve-se em movimento e viajava de cidade em cidade. Nem mesmo a disciplina do silêncio o impedia de fazer o bem. Já nessa tenra idade ele havia começado a corrigir abusos e com os olhos, as mãos e movimentos da cabeça, fazia-se entender.
Por Filóstrato, seu biógrafo, sabemos que Apolônio passou algum tempo entre os Árabes, e foi instruído por eles. Os locais que visitava ficavam fora das rotas, longe das populosas e agitadas cidades. Dizia que o tema de sua conversação requeria “homens, e não povo”. Ele passou o tempo viajando de um a outro desses templos, santuários e comunidades, o que nos leva a crer que havia entre eles algo em comum, da natureza de uma iniciação, que lhe franqueava as portas de sua hospitalidade.
Mas onde quer que estivesse, sempre observava uma divisão regular do dia. Ao nascer do sol praticava certos exercícios religiosos sozinho, cuja natureza ele só transmitia a quem passasse pela disciplina dos “cinco anos” de silêncio. Então palestrava com os sacerdotes do templo ou com os líderes das comunidades, conforme estivesse num templo grego ou não-grego com ritos públicos, ou numa comunidade com uma disciplina própria, à parte do culto público.
Procurava devolver aos cultos públicos a pureza de suas antigas tradições e sugeria melhoramentos nas práticas das irmandades privadas. A parte mais importante de seu trabalho era com aqueles que estavam seguindo a vida interior e que já olhavam Apolônio como um instrutor do caminho oculto. A esses discípulos devotava muita atenção, estando sempre pronto para responder suas perguntas e dar conselhos e instrução. Não negligenciava o povo, pois era seu costume invariável ensiná-lo, pois os que viviam a vida interior, ele dizia, deveriam no início do dia entrar na presença dos Deuses, isto é, passar algum tempo em meditação silenciosa. Depois, passar o tempo até o meio-dia dando e recebendo instrução nas coisas santas, e só depois devotar-se aos afazeres humanos. Isto é, a manhã era devotada por Apolônio à ciência divina, e a tarde, à instrução em ética e na vida prática. Depois do trabalho do dia ele se banhava em água fria, como faziam tantos místicos da época.
Diz Filóstrato que Apolônio resolveu visitar os “Brachmanes” e “Sarmanes” (os Brâmanes e os Budistas), mas o que o levou a empreender essa longa e perigosa viagem não é esclarecido por Filóstrato, que diz simplesmente que Apolônio imaginou que viajar era algo bom para um jovem. Mas é evidente que Apolônio jamais viajou meramente por amor da viagem, pois tudo o que ele fez, fez com um propósito específico.
E, nessa ocasião, em que seus discípulos tentavam dissuadi-lo da viagem, seus guias, segundo suas palavras, eram a sabedoria e seu orientador interior (“daimon”). “Já que sois fracos de coração”, disse o peregrino solitário, “dou-vos meu adeus. Pois eu mesmo devo ir onde quer que a sabedoria e meu eu interior me levarem. Os Deuses são meus conselheiros e não posso fiar-me senão em suas direções”.
Assim Apolônio começou sua vida de viagens. No caminho, provavelmente entre 41 e 54 d.C., na Pérsia, conheceu seu discípulo Damis (“Vamos juntos” – dissera Damis. “Tu seguirás a Deus e eu a Ti”). Passou pela Babilônia, Tróia, Chipre e Grécia onde se iniciou nos mistérios de Elêusis. Em 66 d.C. já em Roma, tentou introduzir junto com o Papa Lino, reformas religiosas mas fugiu de lá devido às perseguições de Nero. Viajou para a Espanha, Norte da África e Alexandria, no Egito.
Deste ponto em diante Filóstrato baseia-se na narrativa de Damis que amava Apolônio com um afeto apaixonado. Ele via em seu mestre um ser quase divino, possuidor de poderes maravilhosos que o assombravam, mas que jamais pôde entender. Damis avançou lentamente na compreensão da real natureza da ciência espiritual, como tantos discípulos. Ele sempre ficava nos recintos externos dos templos e das comunidades a cujos santuários e círculos internos Apolônio tinha pleno acesso e normalmente Damis ignorava os planos e propósitos de seu mestre. Ele menciona isso, em suas notas, como as “migalhas das festas dos Deuses”, os festejos que ele, na maioria das vezes só podia conhecer de segunda mão pelo pouco que Apolônio julgava conveniente lhe contar. Mas está claro que Damis estava fora do círculo da iniciação e isso explica seu amor pelas maravilhas e sua superficialidade.
Apolônio foi um dos maiores viajantes conhecidos da antigüidade. De Nínive Apolônio vai para Babilônia, onde permanece um ano e oito meses, e visita as cidades vizinhas a Ecbatana, a capital da Média. Da Babilônia até a fronteira da Índia nenhum nome de cidade é mencionado. A Índia foi atingida, provavelmente, através do Passo Khaibar, pois a primeira cidade que é mencionada é Taxila (Attock). Assim, seguem caminho através dos tributários do Indo até o vale do Ganges e, finalmente, chegam ao “mosteiro dos sábios”, onde Apolônio passa quatro meses. Esse mosteiro provavelmente ficava no Nepal.
Quando volta segue este itinerário: Babilônia, Ninus (Nínive), Antioquia, Selêucia, Chipre e então a Jônia, onde passa um tempo na Ásia Menor, especialmente em Éfeso, Esmirna, Pérgamo e Tróia. Dali Apolônio cruza para Lesbos, e embarca para Atenas, onde passa alguns anos na Grécia, visitando os templos da Hélade 1 , reformando seus ritos e instruindo os sacerdotes. A seguir o encontramos em Creta e depois em Roma, ao tempo de Nero.
Em 66 d.C. Nero emitiu um decreto proibindo qualquer filósofo de permanecer em Roma, por isso Apolônio mudou-se para a Espanha. Desembarcou em Gades, a moderna Cádiz, mas parece ter ficado na Espanha por um curto período. Dali cruzou para a África, e por mar, de novo, para a Sicília, onde visitou as principais cidades e templos. Então, após quatro anos, Apolônio voltou para a Grécia. De acordo com alguns autores Apolônio estaria com 68 anos de idade.
Do Pireu nosso filósofo embarca para Quios, depois para Rodes e então para Alexandria. Em Alexandria ele permanece algum tempo e tem vários encontros com o futuro Imperador Vespasiano. Depois empreende uma longa viagem pelo Nilo até a Etiópia, além das cataratas, onde visita uma interessante comunidade de ascetas chamados de Gimnosofistas.
Em seu regresso a Alexandria foi convidado por Tito, recém coroado Imperador, para um encontro em Tarso. Depois desse encontro parece ter voltado ao Egito, pois Filóstrato fala brevemente dele ter passado algum tempo no Baixo Egito, e sobre visitas aos fenícios, cilícios, jônios, aqueus, e também à Itália.
No ano 81 Domiciano tornou-se Imperador. Apolônio, que foi firme opositor das loucuras de Nero, também criticou os atos de Domiciano. Com isso tornou-se objeto de suspeita para o Imperador, mas em vez de permanecer longe de Roma, determinou-se a enfrentar o tirano face a face. Cruzando do Egito para a Grécia e tomando um barco em Corinto, navegou pelo caminho da Sicília até Puteoli, e então até a boca do rio Tibre, e daí para Roma. Em Roma Apolônio foi preso e depois libertado. Embarcando de Puteoli, novamente voltou à Grécia, onde passou dois anos. Então, uma vez mais, passou para a Jônia na época da morte de Domiciano, visitando Esmirna e Éfeso e outros de seus lugares favoritos. Então, sob algum pretexto, ele enviou Damis para Roma e desapareceu. Especula-se que tenha empreendido outra viagem para o lugar amado acima de todos, a “terra dos sábios”.
Domiciano foi morto em 96 d.C., e um dos últimos atos registrados de Apolônio é sua visão deste evento no momento em que acontecia. Sobre sua idade na época de seu misterioso desaparecimento das páginas da história, Filóstrato diz que Damis não fala nada, mas alguns, acrescenta, dizem que ele estava com 80, alguns com 90, e outros mesmo com 100 anos.
Vemos que a natureza dos negócios de Apolônio com os sacerdotes dos templos e com os devotos da vida mística eram de caráter íntimo e secreto. Portanto, não temos meios de conhecê-los pelas narrativas de Damis e Filóstrato. Só podemos especular através de indicações externas.
O templo de Esculápio em Egue, onde Apolônio passou anos, era um dos inúmeros hospitais da Grécia, onde a arte da cura era praticada. Ali havia uma atmosfera carregada de influências psíquicas onde os pacientes acorriam para “consultar o deus”. Para fazê-lo era necessário passar por certas purificações preliminares e seguir certas regras, prescritas pelos sacerdotes. Então passavam a noite no santuário e em seu sono eram-lhes dadas instruções para a sua cura. Os sacerdotes deviam ser profundamente versados na interpretação desses sonhos e em sua causa básica. Como Apolônio amava passar seu tempo no templo, ele deve ter encontrado lá satisfação para suas necessidades espirituais e instrução na ciência interior.
Em sua viagem à Índia Apolônio viu muitos magos na Babilônia. Ele costumava visitá-los ao meio-dia e à meia-noite, mas o que acontecia nesses encontros Damis não sabia, pois Apolônio não permitia que o acompanhasse, e ao responder à sua pergunta direta dizia somente: “Eles são sábios, mas não em todas as coisas”.
A descrição de certo edifício a que Apolônio tinha acesso lembra o interior do templo. O telhado era em forma de cúpula, e o forro do teto era coberto de “safiras”. Nesse céu azul havia modelos dos corpos celestes, revestidos de ouro, como se se movessem no éter. Além disso, do teto estavam suspensos quatro “lygges” de ouro, que os magos chamavam de “Línguas dos Deuses”. Eram anéis ou esferas aladas relacionadas à idéia de “Adrasteia” (ou Destino).
A respeito dessa visita aos sábios indianos não é possível concluir muito a partir da narrativa de Damis e de Filóstrato, porque o que Apolônio ouviu e viu lá não contou para ninguém, nem mesmo para Damis, exceto o que poderia derivar da enigmática sentença: “Vi homens morando na Terra e ainda assim sem estar nela, defesos de todos os lados, e mesmo assim sem defesa alguma, e possuindo nada exceto o que todos possuem”. Estas palavras ocorrem em duas passagens, e em ambas Filóstrato acrescenta que Apolônio as escreveu, o que demonstra que Filóstrato deparou-se com elas em algum escrito ou carta de Apolônio e, portanto, são independentes do relato de Damis.
O sentido dessa frase não é difícil de adivinhar: eles estavam na Terra, mas não pertenciam a ela, pois suas mentes estavam estabelecidas nas coisas do alto. Eram protegidos pelos seus poderes espirituais inatos, dos quais temos tantos exemplos na literatura indiana e não possuíam nada exceto o que todos os homens possuiriam, se apenas desenvolvessem o lado espiritual de seus seres. Mas esta explicação não é suficientemente simples para Filóstrato, e então ele recorre a todas as memórias de Damis, ou antes, às lendas de viajantes, sobre levitação, ilusões mágicas e etc. A ênfase principal da narrativa de Damis recai no conhecimento psíquico e espiritual dos sábios. Eles sabem o que se passa à distância, podem revelar o passado e o futuro, e ler as vidas passadas dos homens.
Sobre a natureza da visita de Apolônio, contudo, podemos julgar a partir da misteriosa carta a seus hospedeiros: “Eu vim a vós por terra e vós me destes o mar; não, antes, dividindo comigo vossa sabedoria vós me concedestes o poder de viajar pelos céus. Estas coisas eu trarei de volta à mente dos gregos, e conversarei convosco como se estivésseis presentes, se eu não tiver bebido da taça de Tântalo em vão”.
É evidente que o “mar” e a “taça de Tântalo” são idênticos à “sabedoria” que foi concedida a Apolônio, a sabedoria que ele uma vez mais traria de volta à memória dos gregos. Ele assume, assim, claramente que voltava da Índia com uma missão específica e com os meios de levá-la a cabo, pois não apenas tinha bebido do oceano da sabedoria no qual aprendeu a Brahma-vidyâ 3 , mas também aprendeu como conversar com eles estando seu corpo da Grécia e o deles na Índia.
Ao retornar à Grécia, um dos primeiros santuários que Apolônio visitou foi o de Afrodite de Pafos, em Chipre. A maior peculiaridade exterior do culto pafiano da Vênus era a representação da deusa por um misterioso símbolo de pedra. Parece ter tido o tamanho de uma pessoa, mas com a forma de uma pinha com a superfície polida. Aparentemente Pafos era o mais antigo santuário dedicado a Venus na Grécia. Seus mistérios eram muito antigos, mas não autóctones, foram trazidos do continente, de onde depois se constituiu a Cilícia, em remota antigüidade. O culto ou consulta à Deusa se fazia através de preces e da “pura labareda do fogo” e o templo era um grande centro divinatório. Apolônio passou algum tempo ali e instruiu os sacerdotes integralmente a respeito de seus ritos sagrados.
Na Ásia Menor ele apreciava especialmente o templo de Esculápio em Pérgamo; curou muitos doentes lá, e deu instruções no método correto a adotar a fim de se obter resultados confiáveis através dos sonhos prescritivos.
Em Tróia, Apolônio passou uma noite sozinho junto ao túmulo de Aquiles, um dos locais popularmente mais sagrados da Grécia. Não sabemos por que ele fez isso, pois a fantástica conversa com a sombra do herói contada por Filóstrato parece desprovida de todo elemento de verossimilhança. Mas como Apolônio logo depois visitou a Tessália expressamente para incitar os tessálios a renovar os antigos ritos tradicionais ao herói, é de se supor que era parte de seu grande esforço para restaurar e purificar a antiga instituição da Hélade, para que, com os canais tradicionais liberados, a vida pudesse fluir melhor na nação.
Também se cogita que Aquiles teria dito a Apolônio onde encontrar a estátua do herói Palámedes na costa da Eólia. Apolônio restaurou a estátua, e Filóstrato nos diz que a viu no local. Palámedes foi um dos heróis ante Tróia que a lenda diz ter sido o inventor das letras. Percebe-se que Apolônio via Palámedes como o herói-filósofo do período Troiano, ainda que Homero quase não o mencione.
Apolônio restaurou os ritos a Aquiles, e ergueu uma capela na qual colocou a estátua desprezada de Palámedes. Também construiu um recinto em torno do túmulo de Leônidas nas Termópilas. Os heróis do período Troiano, pareceria, ainda guardavam uma relação com a Grécia, de acordo com a ciência do mundo invisível na qual Apolônio havia sido iniciado. Em Lesbos Apolônio visitou o antigo templo dos mistérios Órficos, que em dias antigos havia sido um grande centro de profecia e divinação. Ali também lhe foi dado o privilégio de entrar no santuário interno ou adytum.
Chegou a Atenas na temporada dos Mistérios Eleusinos e, apesar dos festivais e ritos o povo e também os candidatos à iniciação foram ter com ele, negligenciando suas obrigações religiosas. Apolônio censurou-os, e cumpriu os ritos preliminares necessários e apresentou-se para a iniciação, ele que já havia sido iniciado em privilégios maiores do que os de Elêusis. As razões para essa atitude não precisam ser procuradas: os Eleusinia constituíam uma das organizações intermediárias entre os cultos populares e os genuínos círculos internos de instrução. Eles preservavam uma das tradições do caminho interior, mesmo se seus oficiais naquela época houvessem esquecido o que seus predecessores conheciam. Para restaurar estes antigos ritos à sua pureza, ou para usá-los para seus fins originais, era necessário entrar nos recintos da instituição, pois nada poderia ser feito de fora. Apolônio desejava apoiar a instituição dando o exemplo público de procurar a iniciação ali.
Mas, fosse o hierofante da época ignorante ou estivesse enciumado da grande influência de Apolônio, ele recusou-se a admiti-lo, baseado na alegação de que ele era um feiticeiro e que ninguém tão impuro poderia ser iniciado. Apolônio respondeu a acusação com ironia: “Vós omitistes a mais séria acusação que poderia ser lançada contra mim, isto é, que embora eu de fato conheça mais dos ritos místicos do que seu hierofante, eu vim aqui simulando desejar a iniciação de homens de maior sabedoria que eu”.
Afetado pelas palavras e atemorizado diante da indignação do povo pelo insulto feito ao seu ilustre convidado e assombrado pela presença de um conhecimento que ele já não podia negar, o hierofante implorou para nosso filósofo aceitar a iniciação. Mas Apolônio recusou. “Eu serei iniciado mais tarde. Ele me iniciará”. Diz-se que se referia ao próximo hierofante, que presidia quando Apolônio foi iniciado, quatro anos mais tarde. Durante sua estada em Atenas, Apolônio falou asperamente contra a afeminação das Bacanálias e as barbaridades dos combates de gladiadores.
Os templos, mencionados por Filóstrato, que Apolônio visitou na Grécia, têm a peculiaridade de serem muito antigos. Por exemplo, Dodona, Delfi, o antigo santuário de Apolo de Abe, na Fócida, as “grutas” de Anfiarau (um grande centro de divinação através de sonhos) e Trofônio, e o templo das Musas no Helicão.
Quando entrava nos adyta desses templos com o intuito de restaurar os ritos, era acompanhado somente pelos sacerdotes, e certos discípulos imediatos. Isso sugere uma ampliação do significado do termo “restauração” ou “reforma”, e quando lemos em outras partes sobre os muitos locais consagrados por Apolônio, não podemos pensar senão que parte de sua obra era a re-consagração, e com isso a purificação psíquica de muitos destes centros antigos. Seu principal trabalho externo, contudo, foi instruir e, como Filóstrato diz, “taças de suas palavras foram colocadas em todas as partes para o sedento delas beber”.
Ele não só restaurou os ritos antigos da religião como também prestou muita atenção às antigas constituições e instruções. Assim, o encontramos instando os espartanos a retornarem ao seu antigo modo de vida, a seus exercícios atléticos, sua vida frugal, e à disciplina da antiga tradição dórica. Acima de tudo, louvou especialmente a instituição dos Jogos Olímpicos, cujo elevado padrão ainda era mantido.
Na primavera de 66 d.C., ele deixou a Grécia indo a Creta, onde parece ter passado a maior parte de seu tempo nos santuários do Monte Ida e no templo de Esculápio em Lêbene. Mas, curiosamente, recusou-se a visitar o famoso Labirinto em Cnossos, cujas ruínas haviam sido recém descobertas provavelmente porque uma vez foi centro de sacrifícios humanos.
Em Roma Apolônio continuou seu trabalho de reformar os templos, mas sua permanência na cidade imperial foi bruscamente interrompida, pois em outubro Nero coroou sua perseguição dos filósofos publicando contra eles um decreto de banimento. A seguir o encontramos na Espanha, fazendo seu quartel-general no templo de Hércules em Cádiz.
Retornando à Grécia via África e Sicília, onde visitou Etna, ele passou o inverno (talvez de 67 d.C.?) em Elêusis, vivendo no templo e na primavera do ano seguinte, embarcou para Alexandria, onde passou algum tempo, a caminho de Rodes. A cidade da filosofia e do ecletismo recebeu-o de braços abertos. Mas reformar os cultos públicos do Egito foi um trabalho muito mais difícil do que qualquer outro.
Sua presença no templo de Serápis inspirou respeito universal, tudo sobre ele e cada palavra que pronunciava parecia emanar uma atmosfera de sabedoria e de “algo divino”. O sumo-sacerdote do templo perguntou com desdém: “Quem é sábio o suficiente para reformar a religião dos egípcios?” A resposta de Apolônio: “Qualquer sábio que venha da parte dos indianos”. Aqui, como em toda parte, Apolônio opôs-se ao sacrifício sangrento e tentou substituí-lo, como fizera noutros lugares, pela oferenda de incenso moldado com a forma da vítima. Tentou reformar muitos abusos do comportamento do povo, mas foi mais severo com sua selvagem excitação pelas corridas de cavalos, que freqüentemente acabavam com derramamento de sangue.
Apolônio parece ter passado a maior parte dos vinte anos restantes de sua vida no Egito, mas por Filóstrato não podemos saber nada do que ele fez nos secretos santuários daquela terra de mistérios, exceto que na longa jornada até a Etiópia, Nilo acima, nenhuma cidade, templo ou comunidade deixou de ser visitado. Em todos os lugares havia um intercâmbio de conselhos e instrução nas coisas sagradas.
Além da “Vida de Apolônio”, escrita por Flávio Filóstrato no começo do século III, há referências sobre Apolônio entre os escritores clássicos e entre os Padres da Igreja. Luciano, escritor da primeira metade do século II, usa como tema de uma de suas sátiras o aluno de um discípulo de Apolônio. Apuleio, um contemporâneo de Luciano, classifica Apolônio junto com Moisés e Zoroastro e outros Magos famosos da antigüidade.
Pela mesma época, a obra “Quaestiones et Responsiones ad Orthodoxos” (Perguntas e Respostas aos Ortodoxos), atribuída a Justino, o Mártir, encontramos a seguinte declaração: “Pergunta 24: Se Deus é o autor e mestre da criação, como os objetos consagrados de Apollonius têm poder nas várias ordens desta criação? Pois, como nós vemos, eles acalmam a fúria das ondas e o poder dos ventos e impedem o ataque dos vermes e das bestas selvagens”.
Dion Cássio entre 211 e 212 d.C., diz que Caracala (Imperador entre 211 e 216) honrou a memória de Apolônio com uma capela ou monumento. Foi nessa época (216) que Filóstrato compôs sua “Vida de Apolônio”, a pedido de Domna Julia, a mãe de Caracala. Lamprídio, informa-nos que Alexandre Severo (Imperador entre 222 e 235) colocou a estátua de Apolônio em seu lararium (espécie de capela onde os romanos colocavam as imagens de seus deuses protetores do lar) junto com as de Cristo, Abraão e Orfeu. Vopisco, escrevendo na última década do século III, nos conta que Aureliano (Imperador entre 270 e 275) dedicou um templo a Apolônio, de quem ele tivera uma visão quando sitiava Tiana que se tinha rebelado contra as leis romanas. Ele contou que durante o cerco, teve um sonho ou uma visão, em que Apolônio falava com ele, suplicando-lhe poupar a cidade de seu nascimento. À parte, Aureliano contou que Apolônio lhe disse "Aureliano, se você deseja governar, abstenha-se do sangue dos inocentes! Aureliano, se você conquistar, seja misericordioso!" O Imperador, que admirava Apolônio, poupou desse modo a cidade.
Vopisco fala dele como “um sábio da mais larga fama e autoridade, um antigo filósofo, e um verdadeiro amigo dos deuses”, e mais, como uma manifestação da deidade. “Pois quem dentre os homens foi mais santo, quem mais digno de reverência, quem mais venerável, quem mais divinal que ele? Ele foi quem deu vida aos mortos. Ele foi quem operou e disse tantas coisas além do poder dos homens”. Vopisco é tão entusiástico sobre Apolônio, que prometeu que se vivesse, escreveria uma breve história de sua vida em latim, para que seus feitos e palavras pudessem estar na língua de todos, pois até então os únicos relatos eram em grego. Esses relatos provavelmente foram os livros de Máximo, Merágenes e Filóstrato. Vopisco, entretanto, não cumpriu sua promessa, mas sabemos que perto desta data tanto Sotérico (um poeta épico Egípcio) quanto Nicômaco escreveram Vidas sobre nosso filósofo, e logo depois Tácio Vitoriano, trabalhando sobre as obras de Nicômaco também compôs uma Vida. Nenhuma destas Vidas, contudo, chegou até nós.
Também foi exatamente neste período, os últimos anos do século III e os primeiros do IV, que Porfírio e Jâmblico compuseram seus tratados sobre Pitágoras e sua escola. Ambos mencionam Apolônio como uma de suas autoridades, e é provável que as primeiras 30 estâncias de Jâmblico sejam tomadas de Apolônio.
Agora chegamos a um incidente que arremessa o caráter de Apolônio na arena da polêmica Cristã, onde tem sido debatido até os dias de hoje. Hiérocles, sucessivamente governador de Palmira, da Bitínia e de Alexandria e filósofo, por volta do ano 305 escreveu uma crítica sobre as reivindicações Cristãs, em dois livros, intitulada “Um Apelo Verdadeiro aos Cristãos”, ou “O Amante da Verdade”. Ele parece ter-se baseado em grande parte no trabalho anterior de Celso e Porfírio, mas introduziu um novo tema de controvérsia ao contrapor as obras maravilhosas de Apolônio à reivindicação dos Cristãos de direito exclusivo sobre “milagres”, como prova da divindade de seu Mestre. Nesta parte de seu tratado, Hiérocles usa a Vida de Apolônio, de Filóstrato.
A esta pertinente crítica de Hiérocles, Eusébio de Cesaréia imediatamente replicou em um tratado (que ainda existe) intitulado “Contra Hieroclem”. Eusébio admite que Apolônio era um homem sábio e virtuoso, mas nega que haja provas suficientes de que as maravilhas atribuídas a ele tenham mesmo ocorrido, e se ocorreram, foram obra de “daimons” (na tradução contemporânea, demônio).
Depois a controvérsia reencarnou no século XVI, e quando a hipótese de ser o “Diabo” a causa primeira de todos os “milagres”, exceto os da Igreja, perdeu sua força com o progresso do pensamento científico, a natureza dos prodígios relatados na Vida de Apolônio ainda era uma dificuldade tão grande que deu origem a uma nova hipótese, a de plágio. A vida de Apolônio seria um plágio pagão da vida de Jesus. Mas Eusébio e os Padres que o seguiram não suspeitavam disto, pois viveram numa época em que tal asserção poderia ter sido facilmente refutada. Não há uma só palavra em Filóstrato que demonstre ter ele algum conhecimento da vida de Jesus e, podemos somente dizer que como plagiador da história do Evangelho, Filóstrato é um óbvio fracasso. Filóstrato escreve a história de um homem bom e sábio, um homem com a missão de ensinar, revestida das maravilhosas histórias preservadas na memória e embelezadas pela imaginação de uma posteridade indulgente, mas não o drama da Deidade encarnada como o cumprimento da profecia mundial.
Mas, mesmo depois da controvérsia, ainda existe uma larga diferença de opinião entre os Padres, pois já no fim do século IV João Crisóstomo, com grande mordacidade, chama Apolônio de enganador e fazedor de más obras, e declara que todos os incidentes de sua vida são ficção desqualificada. Jerônimo, ao contrário, na mesma época assume uma posição quase favorável, pois, após ler Filóstrato, escreve que Apolônio encontrou em toda parte algo que aprender e algo por onde se tornar um homem melhor. No começo do século V também Agostinho, enquanto ridiculariza qualquer tentativa de comparar-se Apolônio com Jesus, diz que o caráter de Apolônio era “muito superior” àquele atribuído a Júpiter, no que se tratava de virtude.
Poucos anos depois, Sidônio Apolinário, Bispo de Claremont, fala de Apolônio nos mais altos termos. Sidônio traduziu a Vida de Apolônio para o latim para Leão, conselheiro do Rei Eurico, e escrevendo para seu amigo, diz: “Lêde a vida de um homem que, religião à parte, se assemelha à vossa em muitos pontos; um homem procurado pelos ricos, ainda que jamais tenha procurado riquezas; que amava a sabedoria e desprezava o ouro; um homem frugal em meio a festins, vestido de linho no meio dos purpurados, austero no meio da luxúria... Enfim, falando claramente, talvez nenhum historiador encontrará nos tempos antigos um filósofo cuja vida fosse igual à de Apolônio”.
Assim vemos que mesmo entre os Padres da Igreja as opiniões se dividiam enquanto que entre os filósofos o louvor a Apolônio era ardente. Amiano Marcelino, amigo de Juliano, o Imperador filósofo, refere-se ao Tianeu como “aquele celebérrimo filósofo”, enquanto que uns poucos anos depois Eunápio, discípulo de Crisâncio, um dos professores de Juliano, escrevendo nos últimos anos do século IV, diz que Apolônio era mais que um filósofo, era “um meio-termo, por assim dizer, entre os deuses e os homens”, significando com isso presumivelmente alguém que tinha atingido o grau de ser superior ao homem, mas ainda não igual aos deuses. Não só Apolônio era um adepto da filosofia Pitagórica, mas “exemplificou plenamente o seu lado mais divino e prático”. Esta apreciação aparentemente exagerada talvez encontre uma explicação no fato de que Eunápio pertenceu a uma escola que conhecia a natureza das realizações atribuídas a Apolônio.
Mesmo depois do declínio da filosofia encontramos Cassiodoro, que passou os últimos anos de sua longa vida em um mosteiro, falando de Apolônio como o “renomado filósofo”. Do mesmo modo entre os autores bizantinos, o monge George Syncellus, no século VIII, refere-se diversas vezes ao nosso filósofo, e não apenas despido de toda a crítica adversa, mas declarando que ele foi a primeira e mais notável de todas as eminências que surgiram no Império. Tzetzes, crítico e gramático, chama Apolônio de “todo-sábio e ante-conhecedor de todas as coisas”.
Apolônio voltou à memória do mundo, depois do esquecimento na idade das trevas, sob maus auspícios. Desde o início a antiga controvérsia Hiérocles-Eusébio foi ressuscitada, e todo o assunto foi de uma vez retirado da calma região da filosofia e história e arremessado mais uma vez na tumultuosa arena do amargor e do preconceito religiosos. Durante muito tempo Aldus hesitou em publicar o texto de Filóstrato, e finalmente só o fez em 1501, com o texto de Eusébio como apêndice, para que, como ele piamente diz, “o antídoto possa acompanhar o veneno”. Junto apareceu uma tradução latina do florentino Rinucci. A tradução de Rinucci foi retificada por Beroaldus e impressa em Lion (1504?), e novamente em Colônia em 1534.
Bacon e Voltaire falam de Apolônio nos mais altos termos e mesmo um século antes de Voltaire, o deísta inglês Charles Blount. As notas de Blount, geralmente atribuídas a Lord Herbert, suscitaram tamanha gritaria que o livro foi condenado em 1693, e sobrevivem poucas cópias. As notas de Blount, entretanto, foram traduzidas para o francês um século mais tarde, nos dias do Enciclopedismo, e anexas a uma versão da Vita, – A Vida de Apolônio de Tíana, por Filóstrato, com os Comentários feitos em Inglês por Charles Blount sobre os Primeiros Livros desta Obra.
Apolônio não só vivificou e re-consagrou os antigos centros religiosos por algum motivo desconhecido para nós, e fez o que pôde para ajudar a vida religiosa do seu tempo em suas múltiplas formas, mas também tomou parte decisiva, embora indireta, na influência dos destinos do Império através de seus governantes supremos.
Sua influência era invariavelmente de natureza moral e não política e era levada a cabo através de conversas e instrução filosóficas, pela palavra falada ou escrita. Do mesmo modo que Apolônio em suas viagens conversou sobre filosofia, e discursou sobre a vida de um homem sábio e sobre os deveres de um governante sábio com reis, governantes e magistrados, também tentou aconselhar para seu bem os imperadores que se dispunham a ouvi-lo.
Vespasiano, Tito e Nerva eram, antes de sua elevação à púrpura, amigos e admiradores de Apolônio, enquanto que Nero e Domiciano olhavam o filósofo com temor.
Durante a breve estada de Apolônio em Roma, em 66 d.C., mesmo que nem uma só palavra lhe houvesse escapado que pudesse ser transformada em um pronunciamento traidor pelos numerosos informantes, ainda assim foi levado perante Tigelino, o infame favorito de Nero, e submetido a um cerrado interrogatório. Aparentemente, até essa época, Apolônio estava trabalhando para o futuro, e tinha restringido sua atenção inteiramente à reforma da religião e à restauração das antigas instituições das nações, mas a tirânica conduta de Nero, que não deu paz nem mesmo ao mais inatacável dos filósofos, abriu completamente seus olhos para um mal mais imediato, que parecia ser nada menos que a ab-rogação da liberdade de consciência por uma tirania irresponsável. Daí em diante, portanto, encontramo-lo vivamente interessado nas pessoas dos imperadores seguintes.
Na verdade, Damis, ainda que confesse sua inteira ignorância do propósito da viagem de Apolônio à Espanha depois de sua expulsão de Roma, presume que tenha sido para apoiar a iminente revolta contra Nero. Ele conjetura isso a partir de três dias de entrevistas secretas de Apolônio com o Governador da Província da Bética, que veio a Cádiz especialmente para vê-lo, e declara que as últimas palavras do visitante de Apolônio foram: “Adeus, e lembre-se de Vindex”.
É verdade que quase imediatamente depois irrompeu a revolta de Vindex. Mas toda a vida e caráter de Apolônio são opostos a qualquer idéia de intriga política, ao contrário, ele bravamente contestou a tirania e a injustiça face a face. Ele se opunha à idéia de Eufrates, um filósofo de perfil muito diverso, que teria posto um fim na monarquia e restaurado a república, ele acreditava que o governo por um monarca era o melhor para o Império, mas desejava acima de tudo ver “o rebanho da humanidade” conduzido por “um pastor sábio e fiel”.
De modo que embora Apolônio tenha apoiado Vespasiano enquanto ele tentou realizar dignamente seu ideal, imediatamente censurou-o pessoalmente quando ele privou as cidades gregas de seus privilégios. “Vós escravizastes a Grécia”, ele escreveu. “Vós reduzistes um povo livre à escravidão”. De qualquer maneira, a despeito de sua censura, Vespasiano, em sua última carta a seu filho Tito, confessou que eles eram o que eram exclusivamente por virtude do bom conselho de Apolônio.
Da mesma forma ele viajou a Roma para encontrar Domiciano face a face, e mesmo que tenha sido posto em julgamento e todos os esforços tenham sido feitos para prová-lo culpado de complô traidor com Nerva, ele não pôde ser indiciado por nada de natureza política. Nerva era um bom homem, disse ao Imperador, e não um traidor. Não que Domiciano tivesse realmente alguma suspeita de que Apolônio estivesse pessoalmente intrigando contra ele. Foi colocado na prisão somente na esperança de que poderia induzir o filósofo a revelar as confidências de Nerva e outros homens eminentes que lhe eram objetos de suspeita, e que ele imaginava que tinham consultado Apolônio sobre suas chances de sucesso. Mas os negócios de Apolônio não eram com a política, mas com “os príncipes que lhe pediam conselho sobre a virtude”.
Apolônio não foi somente um filósofo, no sentido de ser um especulador teórico ou de ser o seguidor de um modo de vida organizado, escolado na disciplina da renúncia. Ele foi também um filósofo no sentido Pitagórico original do termo, um conhecedor dos segredos da Natureza, e assim podia falar, como alguém que tinha autoridade.
Ele conhecia o lado oculto das coisas da Natureza por experiência e não por ouvir dizer. Para ele a senda da filosofia era uma vida por onde o próprio homem se tornava um instrumento do conhecimento. A religião, para Apolônio, não era somente uma fé, era uma ciência. Para ele o espetáculo das coisas eram aparências sempre mutantes. Cultos e ritos, religiões e crenças, para ele eram todos um só, considerando o espírito correto que jazia por trás deles. O Tianeu não via diferenças de raça ou credo, essas estreitas limitações não eram para ele.
Acima de todos os outros ele deve ter rido diante da palavra “milagre” aplicada aos seus feitos. A maioria dos registros de taumaturgia de Apolônio são casos de profecias ou previsão, de visão à distância e visão do passado, de ver ou ouvir durante uma visão, de curar os casos de obsessão ou possessão. Ainda jovem, no templo de Egue, Apolônio deu sinais da posse dos rudimentos desta percepção psíquica. Não só sentiu corretamente a natureza do passado sombrio de um rico, mas indigno suplicante que desejava a restauração de sua visão, mas previu, ainda que obscuramente, o mau fim de um que havia atentado contra sua inocência.
Ao encontrar Damis, seu futuro fiel criado ofereceu seus serviços para a longa jornada à Índia considerando que conhecia as línguas dos diversos países por onde teriam que passar. “Mas eu entendo-os todos, mesmo que jamais tenha-lhes aprendido a língua”, respondeu Apolônio, em sua maneira enigmática usual, e acrescentou: “Não vos admireis que eu saiba as línguas dos homens, pois eu conheço até o que eles nunca dizem”. E com isso ele queria dizer simplesmente que podia ler os pensamentos das pessoas, não que ele pudesse falar todas as línguas. Mas Damis e Filóstrato não podiam entender um fato tão simples da experiência psíquica e devem ter pensado que ele sabia não apenas as línguas de todos os homens, mas também as dos pássaros e feras.
Em sua conversa com o monarca babilônio Vardan, Apolônio claramente reivindica presciência. Ele diz que é um médico da alma e pode livrar o rei das doenças da mente, não só porque sabia o que tinha de ser feito, isto é, a disciplina adequada ensinada nas escolas Pitagórica e similares, mas também porque ele antevia a natureza do rei. De fato nos dizem que o assunto da presciência, de cuja ciência Apolônio era um profundo estudioso, foi um dos principais tópicos discutidos por nosso filósofo e seus hóspedes indianos.
Como Apolônio fala ao seu amigo filosófico e estudioso, o Cônsul romano Telesino, para ele a sabedoria era um tipo de divinização ou de tornar divina toda a natureza, uma espécie de estado de perpétua inspiração. E assim, sabemos que Apolônio era informado de todas as coisas desta natureza pela energia de sua natureza “daimônica”. Mas, para os estudantes das escolas Pitagórica e Platônica, o “daimon” de um homem era aquilo que podia ser chamado o Eu Superior, o lado espiritual da alma distinto do puramente humano. É a melhor parte do homem, e quando sua consciência física é unificada com o “morador do céu”, ele tem, de acordo com a filosofia mística mais elevada da antiga Grécia, enquanto ainda na Terra, os poderes daqueles seres incorpóreos intermediários entre os Deuses e os homens chamados “daimones”. Um estado ainda mais elevado, e o homem vivente se torna um Deus na Terra e num estágio ainda mais excelso ele se torna uno com o Bem e então se torna Deus. Daí, encontramos Apolônio rejeitando indignado, a acusação de magia levianamente levantada contra ele, uma arte que atinge seus resultados por meio do pacto com as entidades inferiores que enxameiam nos domínios exteriores da Natureza interna. Nosso filósofo repudiava igualmente a idéia de ser um profeta ou adivinho. Com estas artes ele não tinha nenhuma relação, se alguma vez ele disse algo que parecia presciência, era não por adivinhação no sentido vulgar da palavra, mas devido “àquela sabedoria que Deus revela ao sábio”.
As mais numerosas das maravilhas atribuídas a Apolônio são exemplos de tal presciência ou profecia. Devemos confessar que as frases registradas são freqüentemente obscuras e enigmáticas, mas este é o caso usual neste tipo de profecia, pois os eventos futuros são vistos mais freqüentemente em representações simbólicas, cujo significado não fica claro até ocorrer o evento, ou ouvidos em sentenças igualmente enigmáticas. Às vezes, entretanto, temos exemplos de previsão muito acurados, como a recusa de Apolônio de embarcar em um navio que veio a naufragar na viagem.
Os exemplos de visão de eventos presentes à distância, contudo, como o incêndio de um templo em Roma, que Apolônio viu quando estava em Alexandria, são claros o bastante. De fato, se as pessoas não soubessem mais nada do Tianeu, teriam pelo menos ouvido falar como ele viu, em Éfeso, o assassinato de Domiciano em Roma, no exato momento de sua ocorrência.
Era meio-dia, segundo o relato de Filóstrato, e Apolônio estava num dos pequenos parques ou jardins dos subúrbios, ocupado em dar uma preleção sobre algum tópico filosófico. “Primeiro ele baixou sua voz como se fosse tomado de alguma apreensão, contudo, continuou sua exposição, mas vacilante e com muito menos força do que antes, como um homem que tem outra coisa em sua mente além daquela sobre a qual está falando. Finalmente ele cessou de todo de falar como se não pudesse encontrar as palavras. Então, olhando fixamente para o chão, deu três ou quatro passos para frente, gritando: ‘Matem o tirano, matem!’ E isto, não como um homem que vê uma imagem num espelho, mas como um que tem a própria cena diante de seus olhos, como se ele mesmo estivesse tomando parte nela”. Voltando-se para sua atônita audiência, ele lhes disse o que vira. Mas ainda que eles esperassem que fosse verdade, recusaram-se a acreditá-lo, como se Apolônio estivesse fora de si. Mas o filósofo gentilmente respondeu: “Vós, de vossa parte, estais certos em adiar vosso regozijo até que as notícias sejam trazidas a vós do modo usual, mas quanto a mim, agradecerei aos Deuses pelo que eu mesmo vi”.
Pouco admira, assim, se lemos não só sobre uma quantidade de sonhos simbólicos, mas sua interpretação correta, ser um dos ramos mais importantes da disciplina esotérica da escola. Também não nos surpreendemos de ouvir que Apolônio, baseado somente em seu conhecimento interior, foi útil obtendo a libertação de um homem inocente em Alexandria, que estava a ponto de ser executado junto com um grupo de criminosos. De fato, ele parece ter conhecido o passado secreto de muitos daqueles com quem entrava em contato.
Se for crível que Apolônio teve sucesso ao tratar de obscuros casos mentais, casos de obsessão e possessão, de que nossos asilos e hospitais estão cheios hoje em dia, e que em sua maior parte estão além do âmbito da ciência oficial por sua ignorância dos verdadeiros fatores em operação, igualmente é evidente que Damis e Filóstrato tinham pouco entendimento nesta matéria, e deram rédea larga à imaginação em suas narrativas. Talvez, contudo, Filóstrato em alguns casos esteja só repetindo a lenda popular, cujo melhor exemplo é a cura da praga em Éfeso que o Tianeu havia previsto em tantas ocasiões. A lenda popular diz que a origem da praga estava ligada a um velho mendigo, que fora soterrado sob uma pilha de pedras pela multidão enfurecida. Quando Apolônio ordenou que as pedras fossem removidas, viu-se que o que havia sido um homem tinha se tornado agora um cão enlouquecido espumando pela boca. Por outro lado, o registro de Apolônio “restituindo à vida” uma jovem de berço nobre em Roma, é contado com grande moderação. Nosso filósofo parece ter encontrado o féretro por acaso, então ele subitamente aproximou-se do leito, e depois de fazer alguns passes sobre a donzela, e dizer algumas palavras inaudíveis, “despertou-a de sua morte aparente”. Mas, diz Damis, “se Apolônio notou que a centelha da alma ainda vivia, o que seus amigos deixaram de perceber – segundo consta estava chovendo levemente e se via um tênue vapor em seu rosto, ou se ele fez a vida nela aquecer-se novamente e assim restaurando-a”, nem ele nem ninguém presente poderia dizer.
De uma natureza nitidamente mais fenomênica são as histórias de Apolônio causando o desaparecimento do que estava escrito nas tabuletas de um de seus acusadores perante Tigelino, ou removendo as cadeias de sua perna para mostrar a Damis que ele realmente não era um prisioneiro, mesmo que estivesse acorrentado nas masmorras de Domiciano. E seu “desaparecimento” do tribunal. Essa expressão, porém, só deve ser tomada retoricamente, pois o incidente, em outra parte da narrativa, é contado nas palavras simples “quando ele deixou o tribunal”.
Não devemos, pois, supor que Apolônio desprezasse ou negligenciasse os estudos dos fenômenos físicos em sua devoção à ciência interna das coisas. Ao contrário, temos diversos exemplos de sua rejeição da mitologia em favor de uma explicação física dos fenômenos naturais. Tais, por exemplo, são suas explicações da atividade vulcânica do Etna, e de um maremoto em Creta, acompanhado de indicações corretas sobre a causa imediata da ocorrência. De fato uma ilha distante havia explodido por causa de uma perturbação submarina, como mais tarde foi averiguado. A explicação dos maremotos em Cádiz também pode ser incluída na mesma categoria.
Nosso filósofo era um seguidor entusiasta da disciplina Pitagórica. Filóstrato quer nos fazer acreditar que ele fez mais esforços sobre-humanos para alcançar a sabedoria do que mesmo o grande Samiano. As formas externas dessa disciplina, como exemplificadas em Pitágoras, são deste modo resumidas pelo autor:
“Ele não usaria nada que proviesse de um animal morto, nem tocaria num bocado de comida que anteriormente tivesse tido vida, nem a ofereceria em sacrifício, nem mancharia de sangue os altares, mas só bolos de mel e incenso, e o serviço de sua canção, subiriam deste homem para os deuses, pois ele bem sabia que eles aceitariam tais presentes muito mais que as centenas de bois imolados com a faca. Pois ele, em verdade, mantinha conversas com os deuses e aprendia deles o que lhes agradava dos homens e o que lhes desagradava, e por isso possuía sua natureza sábia. Para o restante, dizia, consultava o divino, e mantinha opiniões sobre os deuses que provavam ser falsas todas as outras, mas junto a ele, declaradamente, chegava-se a alma de Apolo, sem disfarce (isto é, não sob alguma “forma”, mas em sua própria natureza), assim como se aproximavam, ainda que ocultamente, Atena e as Musas, e outros deuses cujas formas e nomes a humanidade ainda não conhecia”.
Daí que seus discípulos considerassem Pitágoras como um professor inspirado, e recebessem suas regras como leis. “Em particular eles mantinham a regra do silêncio a respeito da ciência divina. Pois eles ouviam entre eles muitas coisas divinas e inenarráveis sobre as quais teria sido difícil manter silêncio, se não tivessem antes aprendido que era justamente este silêncio que lhes falava”.
Esta era a declaração geral da natureza da disciplina Pitagórica pelos seus discípulos. Mas, diz Apolônio em sua preleção aos Gimnosofistas, Pitágoras não foi o inventor disso. Foi a sabedoria imemorial, e Pitágoras a havia aprendido dos indianos. Essa sabedoria, continua, lhe havia falado em sua juventude. Ela disse: “Pois sabei, jovem senhor, que não tenho encantos; minha taça está até a borda cheia de fadigas. Abrace qualquer um meu modo de vida, e deve resolver-se a banir de sua mesa todo alimento que uma vez teve vida, deve perder a lembrança do vinho, e assim não mais poluir a taça da sabedoria – a taça que realmente consiste de almas não manchadas pelo vinho. Nem a lã irá aquecê-lo, nem nada feito de animais. Dou a meus servos sapatos de fibra, e nela eles podem dormir. E se os encontro entretidos nos deleites amorosos, logo lhes trago aquela justiça que os passos da sabedoria, para resgatá-los e corrigi-los; em verdade, sou tão rigorosa com aqueles que escolhem meu caminho, que mesmo em suas línguas ponho um ferrolho. Agora ouve de mim quais coisas ganharás, se perseverares.
Um senso inato de prontidão e de correção, e jamais sentir que o quinhão de outrem é melhor que o próprio; eliminar pelo medo os tiranos antes que ser um temeroso escravo da tirania; ter tuas pobres ofertas mais abençoadas pelos deuses do que aqueles que lhes apresentam o sangue dos touros. Se és puro, conceder-te-ei como saber as coisas que virão, e encherei tanto teus olhos de luz que poderás reconhecer os deuses, os heróis, e provar e dominar as formas sombrias que assumem a forma de homens”.
Toda a vida de Apolônio demonstra que ele tentou seguir consistentemente esta regra de vida, e as repetidas declarações de que ele jamais se juntaria aos sacrifícios sangrentos dos cultos populares, mas os condenava abertamente, mostram não só que a escola Pitagórica tinha sempre dado o exemplo do modo mais elevado de sacrificar puramente, mas que eles não só não foram condenados e perseguidos como heréticos por causa disso, mas foram antes considerados como sendo de especial santidade, e como seguindo uma vida superior do que os mortais comuns.
A restrição contra a carne de animais, entretanto, não estava baseada simplesmente em idéias de pureza, tinha uma sanção adicional no amor positivo para com os reinos inferiores e o horror de infligir sofrimento a qualquer criatura viva. Assim Apolônio asperamente recusou-se a tomar parte de uma caçada, quando convidado a fazê-lo por seu real hospedeiro na Babilônia. “Sire”, ele replicou, “esquecestes que mesmo quando sacrificardes não estarei presente? Muito menos então farei estas feras morrerem, e todo o resto quando seus espíritos forem quebrados e forem constrangidos contra sua natureza”.
Mas embora Apolônio fosse um irredutível mestre de si mesmo, ele não desejava impor seu modo de vida sobre os outros, mesmo sobre seus amigos e companheiros pessoais. Assim ele diz a Damis que não deseja proibi-lo de comer carne e beber vinho, ele apenas reserva-se o direito de abster-se e de defender sua conduta se chamado a fazê-lo. Esta é uma indicação adicional de que Damis não era um membro do círculo interno da disciplina, e este último fato explica o porquê de um seguidor tão fiel da pessoa de Apolônio ainda estivesse na escuridão. E não só isso, mas Apolônio mesmo dissuade o Rajá Fraotes, seu primeiro hospedeiro na Índia, que desejava seguir sua observância estrita, de fazê-lo, porque isso o afastaria muito de seus súditos.
Três vezes por dia Apolônio orava e meditava: ao alvorecer, ao meio-dia, e no ocaso. Isso parece ter sido seu costume invariável não importando onde ele estivesse. Parece ter devotado pelo menos uns poucos momentos para a meditação silenciosa nesses momentos. O objeto de seu culto é sempre dito ter sido o “Sol”, isto é, o Senhor de nosso mundo e seus mundos irmãos, cujo símbolo é o orbe do dia.
Quando foi a julgamento, não fez preparação alguma para sua defesa. Ele tinha vivido sua vida como ela se apresentava cotidianamente, preparado para a morte, e assim continuaria. Acima de tudo agora era sua escolha deliberada desafiar a morte pela causa da filosofia. E diante das repetidas solicitações de seu velho amigo para que preparasse sua defesa, replicou: “Damis, pareces ter perdido teu entendimento diante da morte, ainda que tenhas estado tanto tempo comigo e eu tenha amado a filosofia desde mesmo minha juventude, imaginei que estarias tu mesmo preparado para a morte e igualmente conhecias bem meu generalato nisto. Pois como os guerreiros no campo de batalha necessitam não só de boa coragem, mas também daquele generalato que os avisa quando lutar, assim devem os que amam a sabedoria fazer um cuidadoso estudo das boas épocas de morrer, para que possam escolher a melhor e não encontrar a morte todos despreparados. Que eu escolhi e agarrei o momento que segundo a sabedoria era o melhor para a contenda mortal – isto é, se há alguém que deseje matar-me – eu provei a outros amigos quando estavas perto, tampouco cessei de ensinar-te isto em privado”.
Sua pessoa, seus modos e seus discípulos
Seus ditos e sermões
Diz-se que Apolônio tinha uma bela aparência, mas além disso não temos nenhuma indicação muito precisa de sua pessoa. Seus modos eram sempre doces, gentis e modestos, e nisto, diz Damis, ele parecia mais um indiano do que um grego. Mas, ocasionalmente ele impreca, indignado contra alguma barbaridade especial. Seu temperamento era freqüentemente pensativo, e quando não estava falando mergulhava em profundos pensamentos, durante o que seus olhos ficavam fixos no chão.
Ainda que, como vimos, fosse ferrenhamente inflexível consigo mesmo, estava sempre pronto para desculpar os outros. Se, por um lado aplaudia a coragem dos poucos que permaneceram com ele em Roma, de outro recusou acusar de covardia os muitos que haviam fugido. Mas sua gentileza não era demonstrada simplesmente pela abstenção de acusar, ele era sempre ativo em atos positivos de compaixão.
Uma de suas poucas peculiaridades era gostar de ser chamado de “Tianeu”, mas não é dito o porquê disto. Dificilmente pode ter sido porque Apolônio fosse particularmente orgulhoso de seu local de nascimento, pois mesmo que fosse um grande amante da Grécia, tanto que às vezes poderíamos chamá-lo de patriota entusiástico, seu amor pelos outros países era igualmente pronunciado. Apolônio era um cidadão do mundo, se jamais houve algum, em cuja linguagem a terra natal não influenciava, e um sacerdote da religião universal em cujo vocabulário a palavra seita não existia.
A despeito de sua vida extremamente ascética, ele era um homem de compleição forte. Mesmo quando tinha alcançado os 80 anos, dizem, ele ainda era rijo e saudável em cada membro e órgão, aprumado e perfeitamente formado. Havia ainda um certo charme indefinível em torno dele que o fazia mais agradável de ver do que o próprio frescor da juventude, e mesmo que sua face estivesse coberta de rugas, como o representavam as estátuas no templo de Tiana no tempo de Filóstrato. De fato, diz seu retórico biógrafo, os relatos decantam mais o charme de Apolônio em sua idade provecta do que a beleza de Alcebíades em sua juventude.
Em resumo, nosso filósofo parece ter tido a presença mais encantadora e a disposição mais amável. Sua absoluta devoção à filosofia não teve uma natureza eremítica, pois ele passou sua vida entre os homens. Não admira que tenha atraído tantos seguidores e discípulos. Teria sido interessante se Filóstrato nos tivesse dito mais sobre estes “Apolônicos”, como eram chamados e se formavam uma escola distinta, ou se reuniam em comunidades segundo o modelo Pitagórico, ou se eram simplesmente estudiosos independentes atraídos à personalidade dominante da época no campo da filosofia. Porém, é certo que muitos deles usavam a mesma roupagem que ele e seguiam o seu modo de vida. Também é feita repetida menção aos acompanhantes de Apolônio em suas viagens, às vezes até dez de uma vez, mas a nenhum deles permitia ensinarem até que houvessem cumprido o voto de silêncio.
Os mais notáveis destes seguidores foram Musônio, que era considerado o maior filósofo da época depois do Tianeu, que foi a vítima especial da tirania de Nero, e Demétrio, “que amava Apolônio” . Esses nomes são bem conhecidos da história, outros nomes já desconhecidos são os do egípcio Dioscórides que, devido à má saúde, foi deixado para trás na longa viagem à Etiópia. Menipo, a quem livrara de uma obsessão. Fédimo e Nilo, que o seguiu deixando os Gimnosofistas e, é claro, Damis, que nos faz pensar que estava sempre com ele desde a época de seu encontro em Ninus.
Apolônio acreditava na oração, que era muito diferente da oração vulgar. Para ele a idéia de que os deuses pudessem ser desviados da senda da estrita justiça pelas súplicas dos homens era uma blasfêmia. Que os deuses pudessem se tornar partidários de nossas esperanças e temores egoístas, para nosso filósofo era algo impensável. Só sabia de uma coisa: que os deuses eram os ministros do direito e os rígidos administradores do justo merecimento. A crença comum, que persiste até em nossos dias, de que Deus pode ser desviado de Seu propósito, de que pactos poderiam ser feitos com Ele ou Seus ministros, era inteiramente desprezível para Apolônio. Seres com quem pactos podiam ser feitos, que podiam ser influenciados e obrigados, não seriam deuses, mas menos que homens. Assim encontramos Apolônio, jovem, conversando com um dos sacerdotes de Esculápio nos seguintes termos:
“Já que os Deuses conhecem todas as coisas, imagino que alguém que entre no templo com uma consciência correta em si rezaria assim: ‘Dai-me, oh deuses, o que me cabe!’”
E assim também ele rezou, em sua longa jornada à Índia, na Babilônia: “Deus do Sol, envia-me sobre a Terra até onde for bom para Ti e para mim e que eu possa conhecer o bem, e jamais conhecer o mal ou ser conhecido por ele”.
Uma de suas preces mais comuns era, segundo Damis, assim: “Concedei, oh Deuses, que eu tenha pouco e não precise de nada”.
“Quando entrais nos templos, pelo que rezais?”, perguntou para nosso filósofo o Pontífice Máximo Telesino. “Eu rezo”, disse Apolônio, “para que a retidão possa imperar, para que as leis permaneçam intactas, para que o sábio seja pobre e os outros, ricos, mas honestamente”.
A fé de nosso filósofo no grande ideal de nada ter e ainda assim possuir todas as coisas é exemplificada em sua réplica ao oficial que demandava como ele pretendia entrar nos domínios da Babilônia sem permissão. “Toda a Terra”, disse Apolônio, “é minha, e me é dado que eu a percorra”.
Há muitos exemplos de dinheiro sendo oferecido a Apolônio por seus serviços, mas ele invariavelmente recusava e não só isso, mas seus seguidores também recusavam todos os presentes. Quando o Rei Vardan, com verdadeira generosidade oriental, ofereceu-lhe presentes, foram devolvidos e Apolônio disse: “Vêde, minhas mãos, ainda que muitas, são todas parecidas”. E quando o rei perguntou a Apolônio qual presente lhe traria para da Índia, nosso filósofo replicou: “Um presente que vos agradará, Sire. Pois se minha estada lá me tornar mais sábio, voltarei a vós melhor do que sou agora”.
Um exemplo de como Apolônio transformava acontecimentos casuais em boas ilustrações é o seguinte: Certa vez em Éfeso, em uma das estradas pavimentadas perto da cidade, ele estava falando sobre dividirmos nossos bens com os outros, e como deveríamos naturalmente ajudar uns aos outros. Um grupo de pardais estava pousado numa árvore próxima em perfeito silêncio. Subitamente um outro pardal chegou voando e começou a chilrear, como se quisesse dizer aos outros qualquer coisa. Imediatamente todo o bando começou a pipilar também, e voaram todos atrás do recém-chegado. A supersticiosa audiência de Apolônio ficou muito impressionada pelo comportamento dos pardais, e viu nisso um augúrio de alguma coisa importante.
Mas o filósofo continuou seu sermão. O pardal, disse ele, convidou seus amigos para um banquete. Um garoto escorregou em um campo próximo e esparramou-se algum grão que ele carregava em uma bolsa; ele recolheu a maior parte e foi-se embora. O pequeno pardal, calhando de encontrar os grãos que sobraram, imediatamente voou para convidar seus amigos para o festim. Então a maior parte da audiência correu para ver se era verdade, e quando voltaram todos gritando e gesticulando maravilhados, o filósofo continuou: “Vêde que cuidado os pardais têm uns para com os outros, e quão felizes ficam em compartilhar seus bens. Mas nós homens não o aprovamos antes, se vemos um homem dividindo seus bens com outros homens, chamamo-lo de esbanjador, extravagante, e de outros nomes, e acusamos os homens que recebem a partilha de serem aduladores e parasitas. O que nos resta então senão encerrarmo-nos em casa como aves de engorda, e empanturrarmos nossos estômagos na escuridão até que rebentemos de gordura?”
Em outra ocasião, em Esmirna, Apolônio, vendo um navio ser carregado, usou a ocasião para ensinar às pessoas a lição da cooperação. “Olhai a marujada!”, ele disse. “Vêde como alguns aprontaram os botes, alguns subiram as âncoras e as prenderam, alguns dispuseram as velas para aproveitar o vento, como outros ainda verificaram a proa e a popa. Mas se um único homem falhar em desempenhar uma só de suas tarefas, ou negligenciar suas atribuições, sua navegação será ruim, e terão a tempestade no meio deles. Mas se rivalizarem entre si, tentando equiparar-se cada um a seus companheiros, o barco terá céus favoráveis, e um bom tempo e boa viagem sucederão”.
Novamente, em outra ocasião, em Rodes, Damis perguntou-lhe se ele conhecia algo maior que o famoso Colosso. “Sim”, replicou Apolônio; “o homem que anda nos honestos sendeiros da sabedoria que nos dá a saúde”. Também há um número de exemplos de respostas satíricas ou sarcásticas dadas por nosso filósofo, e de fato, a despeito de seu temperamento usualmente grave, ele às vezes zombava de seus ouvintes, e às vezes, se podemos dizer assim, ironizava sua estultice.
Mesmo em tempos de grande perigo esta característica se mostrava. Um bom exemplo é a resposta à delicada pergunta de Tigelino: “O que pensais de Nero?”. “Penso melhor dele do que vós”, redargüiu Apolônio, “pois vós acreditais que ele deveria cantar, e eu penso que ele deveria manter-se em silêncio”. Também sua resposta ao jovem Creso (Creso, rei da Lídia, ficou famoso por sua enorme riqueza) da época é tão irônica quanto sábia; “Jovem senhor”, disse ele, “penso que não sois vós que possuís vossa casa, mas que vossa casa vos possui”. Do mesmo estilo é a resposta a um glutão que jactava-se de sua gulodice. Ele copiava Hércules, dizia, que era famoso tanto pela comida que comia quanto por seus trabalhos. “Sim”, disse Apolônio, “pois ele era Hércules. Mas vós, que virtude tendes, oh montanha de gordura? A única coisa que chama a atenção em vós é a possibilidade de explodirdes”.
A despeito da roupagem literária que é posta sobre os discursos mais longos de Apolônio, eles contêm muitos nobres pensamentos, como podemos ver pelas seguintes citações das conversas de nosso filósofo com seu amigo Demétrio, que estava tentando dissuadi-lo de enfrentar Domiciano em Roma.
“A lei”, disse Apolônio, “nos obriga a morrer pela liberdade, e a natureza ordena que morramos por nossos pais, nossos amigos, ou nossos filhos. Todos os homens estão ligados por estes deveres. Mas um dever superior é imposto sobre o sábio: ele deve morrer por seus princípios e a verdade que defende, mais cara que a vida. Não é a lei que lhe impõe a escolha, não é a natureza é a força e coragem de sua própria alma. Mesmo que o fogo e a espada lhe aflijam, não sobrepujarão sua resolução ou o obrigarão à menor falsidade, mas ele guardará os segredos das vidas alheias e tudo o que lhe for confiado à honra tão religiosamente como os segredos da iniciação.
E eu sei mais que os outros homens, pois sei que de tudo o que sei, algumas coisas são para o bom, outras para o sábio, outras para mim mesmo, outras para os deuses, mas nada para os tiranos. Além disso, penso que um homem sábio não faz nada sozinho ou por si mesmo, e nenhum pensamento seu é secreto, pois ele mesmo é sua testemunha. E se o ditado famoso ‘conhece-te a ti mesmo’ é de Apolo ou de algum sábio que aprendeu a conhecer-se e proclamou-o como um bem para todos, penso que o homem sábio que conhece a si mesmo e traz seu espírito em constante camaradagem, para lutar à sua destra, não temerá o que o vulgo teme, nem condescenderá em fazer o que a maioria dos homens faz sem a menor vergonha”. Nisto temos o verdadeiro desdém filosófico diante da morte, e também o calmo conhecimento do iniciado, do confortador e do conselheiro de outros, a quem os segredos de suas vidas foi confessado, e que nenhuma tortura poderia jamais extrair de seus lábios. Aqui, também, temos a plena percepção do que é consciência, da impossibilidade de ocultar o menor traço de mal no mundo interior e ainda o fulgurante brilho de uma ética superior que faz a conduta habitual das massas parecer surpreendente – “o que eles fazem, e sem vergonha alguma”.
Suas cartas
Eis uma, aos magistrados de Esparta:
“Apolônio aos Éforos, saudações!
“Apolônio a Musônio, o filósofo, saudação!
“Musônio a Apolônio, o filósofo, saudação!
“Apolônio a Musônio, saudação!
“Musônio a Apolônio, o filósofo, saudação!
Sócrates foi condenado à morte porque não preparou sua defesa. Farei o mesmo. Adeus!”
Contudo, Musônio, o Estóico, foi condenado à servidão penal por Nero.
Eis uma nota ao Cínico Demétrio, um dos mais devotados amigos de nosso filósofo:
“Apolônio, o filósofo, a Demétrio, o Cão (isto é, o Cínico), saudação!
Apolônio parece ter escrito muitas cartas a imperadores, reis, filósofos, comunidades e estados, ainda que não tenha sido correspondente prolixo. De fato, o estilo de suas notas curtas é extraordinariamente conciso, e foram compostas, segundo Filóstrato, “ao modo da scytale dos lacedemônios” 4 È evidente que Filóstrato teve acesso a cartas atribuídas a Apolônio, pois ele cita um número delas, e não há razão para duvidarmos de sua autenticidade. De onde ele as obteve, não nos diz, a menos que fossem a coleção feita por Adriano em Âncio.
É possível para os homens não cometer erros, mas requer-se homens nobres para reconhecer que os cometeram”.
Tudo o que Apolônio coloca é um punhado de palavras em grego. Aqui, também, há um interessante intercâmbio de notas entre os dois maiores filósofos da época, ambos tendo sofrido prisão e estando em constante risco de morte.
Quero ir a vós, compartilhar conversa e teto convosco, e ser-vos de alguma utilidade. Se ainda credes que Hércules uma vez resgatou Teseu do Hades, escrevei o que precisais. Adeus!”
“Boa recompensa se reserva para vós por vossos bons pensamentos; o que está reservado para mim é um que espera seu julgamento e prova sua inocência. Adeus.”
“Sócrates recusou ser livre da prisão por seus amigos e compareceu perante os juízes. Foi condenado à morte. Adeus”
“Eu vos dei a Tito, o imperador, para ensiná-lo o caminho da realeza, e vós em troca destes-me poder falar-lhe com verdade; e com ele sêde tudo, menos irado. Adeus!”
4 scytale era uma vara, ou bastão, usado como cifra para despachos escritos. Uma tira de couro era enrolada obliquamente em torno, onde os despachos eram escritos ao comprido, de modo que quando desenroladas eram ilegíveis. Os comandantes, no exterior, tinham uma vara de igual espessura, em torno da qual enrolavam seus documentos, e assim se tornavam capazes de ler os despachos. Daí que scytale veio a significar, geralmente, um despacho espartano que era caracteristicamente lacônico em sua brevidade.
Os escritos de Apolônio
Mas além dessas cartas Apolônio também escreveu alguns tratados, dos quais, contudo, apenas um ou dois fragmentos foram preservados. Estes tratados são:
A Vida de Pitágoras. Porfírio se refere a este livro, e Jâmblico cita uma longa passagem dele.
O Testamento de Apolônio. Foi escrito no dialeto jônico, e contém um sumário de sua doutrina.
Os Ritos Místicos ou Sobre os Sacrifícios (O título completo é dado por Eudócia, Jônia). Este tratado é mencionado por Filóstrato, que nos diz que dispunha sobre o método apropriado de sacrificar a cada deus, as horas propícias para rezar, e as oferendas. Teve larga circulação, e Filóstrato encontrou cópias dele em muitos templos e cidades, e nas bibliotecas dos filósofos. Diversos fragmentos foram preservados, dos quais o mais importante é encontrado em Eusébio e tem este conteúdo: “É melhor não fazer sacrifício algum a Deus, nem acender um fogo, nem chamá-lo por nenhum nome que os homens dão às coisas sensíveis. Pois ele não precisa de nada, nem mesmo dos deuses, muito menos dos homens pequeninos – nada que a Terra produza, nem vida alguma que ela sustente, ou mesmo qualquer coisa que o ar límpido contenha. O único sacrifício adequado a Deus é a melhor razão do homem, e não a palavra que sai de sua boca. Nós homens deveríamos procurar o melhor dos seres através da melhor coisa em nós, pois o que é bom – age através da mente, pois a mente não necessita de coisas materiais para fazer sua oração. Assim, para Deus, o poderoso Um, que está acima de tudo, nenhum sacrifício deveria jamais subir.”
Historiadores nos contam que os eruditos estão convencidos da autenticidade deste fragmento. Este livro, como vimos, estava em larga circulação e era tido na mais alta conta, e diz-se que suas regras foram gravadas em pilares de bronze em Bizâncio.
b. Os Oráculos, ou Sobre a Divinação, 4 livros. Filóstrato parece pensar que o título integral era Divinação dos Astros, e diz que era baseado no que Apolônio havia aprendido na Índia. Mas o tipo de divinação sobre que Apolônio escreveu não era a astrologia comum, mas algo que Filóstrato considerava superior à arte humana comum nesta área. Ele, porém, nunca soube de alguém que possuísse uma cópia desta obra rara.